17 maio 2009

RELATO DE UM DIA FRIO

Foi preciso abrir as janelas para ver o moço atravessar a rua mancando. E foi preciso lavar os vidros para ver que era dia de sol. Tenho vontade de escrever sobre o nada. Não se trata de falta do que dizer, ao contrário, é esse muito nada que me acerca. Esse devastador silencio agitado. Um escafandro em área urbana. Apelo para Satie na ânsia de me ver calmo outra vez. Deus, cuida do meu coração, sei que ando ateu, mas é a ti, força invisível que deposito minhas esperanças. Tentei fazer bolo, passar café, limpar o chão e esconder as marcas. Escrevi na parede palavras de outros. Pintei uma tela e a rasguei. Li Clarice e dormi. Me lavei por duas horas até ficar com a pele vermelha e quente. Faz frio lá fora. Faz muito frio lá fora. E aqui dentro de mim também. Antitérmico de oito em oito horas. Posso lavar a louça de ontem, mas não quero, posso mudar os móveis, de novo, mas não quero, posso ouvir canção popular, mas detesto. As plantas estão secas, preciso rega-las, mas cade forças? Tenho uma biblioteca modesta e podia me distrair não fossem meus olhos que ardem. E se eu dançar? Tolice, vá tirar as teias de aranha que forram seu teto. E se eu parar de escrever agora? .................................
De que adiantou? Ninguém me impediu. Parei e voltei e ninguém viu. Alguém lê? É desse silencio que falo, que quero escrever. Desse nada que acontece sempre. É impressão minha ou o vento está cansado? Acabaram-se as drogas aqui de casa e eu me tornei uma. Não posso nem gritar pois já estou rouco. Preciso de xaropes, de todas as cores. Um ciclista de camiseta vermelha pedala no centro da rua. O que ele pretende? Morrer também? Nem pássaros pousam na janela. E elas estão limpas e com migalhas de bolo embatumado. Ontem eu fui ao cinema disposto a chorar, despejar esse sal que está morando em mim. Um filme delicado de imagens claras e perturbadoras até, mas não chorei. Me tornei um insensível que não consegue mais chorar? Voltei para casa e resolvi dar fim a um outro filme que já vinha assistindo em partes e também não chorei, por mais cruel que fosse o roteiro. Apaguei as luzes e dormi. Hoje acordei cedo e já não é mais tão cedo assim e estou aqui sem nada para fazer e tudo para arrumar. Passa uma estudante com mochilas pesadas nas costas. Ela não me vê, estou protegido nessa caixa medonha por trás das cortinas. Ela também esta só, volta sem os amigos da escola. Fico a cada minuto mais surdo, estou perdidamente resfriado. Sim, faz muito frio lá fora, embora seja um dia de sol. Não fosse o ingresso que já comprei para o teatro dessa noite eu não sairia mais daqui. Se eu fosse uma galinha que pudesse chocar seus ovos. Com a certeza de amanha ter companhia. Que tolice. Vou beber. Cachaça pura com morangos. Olha lá, uma senhora de casaco lilás quer atravessar a rua. Ela tem medo. Ela também tem medo. É um medo diferente do meu, mas tem. Ela tem medo a senhora de casaco lilás. É um belo casaco, será de lã? Eu gosto dos azulejos do prédio vizinho. Esse ônibus tem passado com mais frequência, justamente porque não o preciso agora. Será que eu devia tomar um ônibus e chegar no ponto final e descer? Não precisa, já cheguei. De repente me vem a vontade de rir e zombar de mim. Dessa minha tristeza com causa. Desse meu texto triste. Dessa postura de voyeurismo barato e infantil. Satie cansou assim como o vento e como eu.
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sem mais o que dizer, durmo. 

Andy Gercker

RELATO DE UM DIA SEM FOME

Não a tem, a fome. Mas tem que por obrigação, comer. Logo mais suas pernas irão tremer caso não invente algo para mastigar e digerir. Não sente fome, sente frio. Lá vai: água, óleo e sal. Espera ferver a água dançando música francesa. Escolhe a massa entre um passo e outro da coreografia. Le fabuleux destin d´ um garoto triste num dia frio, tramando idéias para esquecer o que lhe atormenta enquanto escolhe o molho para enriquecer seu prato. Decide por fim, ervas finas. A massa mergulha na fervura, grita, procura uma tampa e abafa. Ficam apenas uns sussurros, que machucam. Aumenta o volume da música, não quer mais sofrer, não tanto assim. Sete, oito, um passo a frente, esquerda, uma volta e pula no ar e assim repete para decorar, no oito então: cinco, seis, sete e oito. Exímio dançarino. Un film de solidão. De um autor cabisbaixo e franzino. O indesejável alimento está pronto, é instantâneo. Escorre e mistura ao molho de lata. Serve acompanhado de um saboroso suco de frutas artificial. Como ele. Dança.... dança.... chora e dança.... e não come. Sai e alcança a rua fria e chora mais, e mesmo longe de casa, sem música, ainda dança e dança e chora. Na mesa, em casa o prato esfria. E ele corre para passar o frio, em vão... neva é nele. E isso nem a música, nem a massa nem qualquer coreografia é capaz de esquentá-lo. Só há um remédio, que se chama: um pouco de amor. Um pouco de amor ele pensa e ri. Só um pouco, um pouco de amor e ri. Um passo a frente, esquerda, uma volta e pula no ar. A comida na mesa por fim congela.

Andy Gercker

PRECISO VER O MAR

Preciso ver o mar. Curioso pensar que o que mais me assusta é o que mais me acalma também. O mar. Como é misterioso o mar. Hoje me peguei com essa necessidade, essa falta, com esta saudade. E ela chegou assim inesperada num momento tão absolutamente impróprio, mas me veio assim: que preciso ver o mar. Mas tem que ser naqueles dias em que ninguém se interessa por ele. A praia precisa estar deserta. Tem que ser naquele horário quase de fim de tarde início da noite em que a cor do céu ainda está indefinida. Seria bom se esse momento congelasse. E ficasse assim naquela cor naquele horário sem ninguém e só silêncio.  Quem sabe assim, quem sabe eu olharia para dentro de mim. Tenho evitado isso. Antes era uma apenas uma impressão agora sei que existem muitos de mim em mim, dois com absoluta certeza. O eu eu e o eu eu eu. Entendeu? Eu explico: uma espécie de: o que sou e o que de fato sou. Ficou mais claro? Eu sei como sou, sei por que sou só não entendo por que não ouço e porque ignoro quem sou. Seria tão mais fácil, gastaria menos tempo viveria mais coisas. Esse outro eu do meu eu é diabólico, não no sentido negativo, mas na capacidade de criar artimanhas e me passar sempre uma grande rasteira. Às vezes um terceiro eu do eu eu assiste isso e prevê a cilada em que estou caindo a cilada que eu mesmo preparei para mim e nada faz para evitar mais um tombo. Esse terceiro é cruel. Descobri agora. Deve ser pelo fato de sentir-se menosprezado. Aqui dentro ele não tem muita importância já que o que conta mesmo são esses dois. Eu queria simplesmente ser apenas um e queria que fosse racional, objetivo certeiro, prático, independente, ousado e mais generoso. Mas não cabe em um só tudo isso daí que tenho ou temos, não sei, não conheço outro por dentro para afirmar, mas daí que existem inúmeros de mim em mim. A temperatura contribui muito para que algumas dessas carências se manifestem a generosidade, por exemplo, faz tempo que não a vejo, deve ser pelo frio. Não tenho sido generoso comigo com os outros os externos talvez. É sempre tudo tão móvel em transição percorrendo caminhos distintos a cada segundo, mesmo sabendo a direção tendo o mapa decorado, mas esse segundo eu atrapalha, insiste em perturbar. Pra resumir, é a minha consciência brigando com a minha carência. Um minuto. Ou é a minha carência brigando com a minha consciência? Estão vendo? Elas não se entendem. Atrapalham-me até para defini-las. É uma querendo receber algo tão abstrato que não se sabe o que é, e a outra sabendo disso e ainda permitindo que isso aconteça sempre. Duas tolas perdendo tempo e fazendo sofrer um todo. Individualismo é isso que me destrói. Tão simples e tão impossível. Esqueça quando disse logo acima que sei como sou e sei por que sou. Na verdade não sei. Assim como não sei quem está escrevendo. Me perdi. Só sei que preciso ver o mar. Mas tem que ser naquele horário naquela cor sem ninguém só essa casca com tantos de mim, dentro de mim, deitado na praia de braços abertos esperando a primeira onda para aos poucos ir levando-me para dentro do mar para que eu me afogue de verdade. Quero ser arrastado aos poucos, discretamente e em silêncio sumindo. Quero morrer no meu medo. No mar. Quero nascer de novo e quando nascer quero pouco, quase nada, modestamente quero apenas ser um e mais nada.

Andy Gercker