30 agosto 2011

CINZEIRO, FUMAÇA, UM POUCO DE VIDA E BARULHINHOS


Ela estava sentada no canto daquele bar fétido e triste namorando um copo de bebida forte e amarga e com um cigarro queimando no cinzeiro e a fumaça criando uma nuvem a sua frente. Ela estava com seu vestido preto discreto e com suas belas pernas. Cruzava-as sensualmente, a mostra para quem as quisesse ver, mas ninguém as via, pois estava sentada no canto desse bar. Um pouco bêbada um pouco triste um pouco só. No outro lado do bar o garçom virava o disco da Billie Holiday na vitrola antiga, tocava Lover Man e ela sorria chorando. Exausta ouvia o som de suas unhas no copo velho e raso de bebida. Estava bom ali, embora, não quisesse estar ali. Queria estar em outro lugar, mas preferia ficar ali mesmo. Não queria pensar. Estava tentando, nem sei se estava tentando. Mas se pudesse, pararia de pensar. O ruído da agulha na vitrola com suas unhas no copo formavam um som. Encostou o copo bem próximo ao rosto e se esforçou para que uma gota de lágrima caísse no copo e que o som da gota junto com suas unhas no copo e a agulha na vitrola pudesse fazer um outro e novo som, e assim, sonâmbula, foi percebendo cada pequeno som que junto de outros iam criando um novo burburinho. Muito longe conseguiu distinguir um leve apito de trem e sorriu. Seguia bêbada e triste. Coreografando barulhinhos de uma outra realidade. Percebeu uma torneira pingando a tosse do garçom compassada o rangido da porta do banheiro indo e vindo. Ia descobrindo um lugar que nunca havia imaginado, um mundo anônimo de pequenos sons tilintando. E ouviu os cadarços de uma criança entrando correndo para comprar balas no balcão e as marteladas num prego algumas casas dali e de pássaros pousando na janela para se alimentar de farelo de bolo deixados pela cozinheira. Era um bar que funcionava como café durante todo o dia e ela estava sentada no canto desse bar fazia tempo, cigarros acendidos e não tragados se acumulavam no cinzeiro e estava tão calada sofrendo e sorrindo em silencio escondida no canto do bar que o garçom esquecia de oferecer outra bebida ou quem sabe se importar com a aparente desilusão dessa moça ou mulher exuberante e falecida na poltrona vermelha e rasgada desse lugar que não queria estar, mas não sabia onde gostaria de estar. Billie Holiday já devia estar cansada de tanto rodar. Através da persiana tonta pode notar que o dia era findo e tantos novos ruídos poderiam vir com a noite e ouviu atenta uma cigarra rouca cantar agarrada em alguma árvore, talvez encostada na parede do bar e viu a troca de pessoas, já não eram mais os mesmos rostos da tarde, eram tristes agora, como o seu. Olheiras e rugas buscando conforto na companhia de copos amarelados de bebida forte. Estava sensualmente sozinha e buscando minuciosamente outros barulhinhos para decorar esse novo mundo. Lânguida e melindrosa escorregava suas pernas roçando a poltrona, tentaria excitar alguém se fosse vista. Nunca era nesse mundo que a deixava invisível perdida em sua tristeza de algum motivo que nem lembrava por que a deixava tão desiludida e infeliz jogada num canto de bar, bebendo a mesma bebida desde cedo atenta a minúsculos ruídos de uma outra esfera. Imaginou-se vagando em outras ruas de um lugar criado por ela embalados pelo jazz rouco da cantora cansada na vitrola, ouvindo e descobrindo um formidável terreno de sons nunca percebidos. Lembrou de uma passagem num livro de Robert Arlt... Vida sos linda, vida... Sabes? De aquí en adelante adoraré a todas las cosas hermosas de la Tierra... cierto... adoraré a los árboles, y a las casas y a los cielos... adoraré todo lo que está en vos... además... decíme, Vida, conociste vos alguno que fuera como yo? E sorriu por um instante e sem chorar dessa vez. Ouviu o garçom gritando feliz: seja bem vindo Jack e pensou que pudesse ser Kerouac e se fosse o convidaria para sentar-se próximo e cruzaria ainda mais suas pernas sensualmente, que a esta altura já estariam trançadas de tanto as cruzar durante à tarde e contaria em voz suave sua história e sua angustia e sua experiência de ouvir sons de uma outra vida tão presente e secreta, que ele anotaria afoito para compor um novo livro. De súbito levantou-se, deixou uma nota amassada sobre a mesa embaixo do cinzeiro cheio e saiu no seu vestido preto e tão discreto quanto sua presença nessa tarde nesse canto desse bar fétido e triste. Na saída antes de abrir a porta olhou-se no espelho ajeitou o vestido levantou os seios jogou um sorriso teatral no rosto e saiu perdendo-se entre tantos pela rua. A vida a chamava enfim.

Andy Gercker - 13 de Novembro de 2007.