26 setembro 2011

ESCADARIAS


Com seus úmidos cabelos rigorosamente alinhados para o sul de sua cabeça, descia melindrosamente os degraus da escadaria de madeira do antigo e sombrio casarão. Descobrindo pé após pé o que há muito havia assistido: o interior de sua casa. Tinha a sensação de que caminhava ao precipício, mas não abandonava o habitual sorriso de escárnio nos lábios trêmulos. Infantil. Reconhecia vagamente nas telas das paredes um rosto familiar e falecido já esfarelado, embora, sem conseguir recuperar qualquer lapso de lembranças referente ao nome da imagem doentia, de mulher pintada de húmus por algum artista devasso da provável época. Passou algum instante frente à imagem lúgubre e tornou a descer as escadarias, analisando a louça também exposta nas paredes, eram pratos, sopeiras, colheres de prata e guardanapos bordados com as iniciais de sua identidade. Levava a mão até o queixo tentando em vão desvendar o mistério. A cada degrau descido era como se a escadaria fosse aumentando gradativamente para os fundos dos pés. Prolongando uma estranha lembrança. Formando uma imagem angustiante da previsível jornada que enfrentaria até chegar ao afastado término da descida. Trazia nas mãos seu chapéu de abas flexíveis amareladas do tempo e ao braço escorregava seu inseparável casaco reportado. Faltava-lhe uma bengala, que provavelmente havia deixado junto as suas fotografias em cima da cama. Abruptamente livrou-se dos pertences que carregava nos bolsos e nas caixas empilhadas em seu quarto e invadiu o corredor decidido explorar o andar inferior de sua casa. Não conseguia lembrar de quando havia sido condenado à solidão no terrível espaço cinza que cresceu sem ver as vozes que ouvia. No corrimão sentia um cheiro de esquecimento e esparramava os dedos confiante e persistente, acompanhando as sinuosas curvas da madeira seca presa aos balaústres talhados também com as iniciais de seu nome. Ou com o que supunha que fosse seu nome. Trajava uma calça de cor preta que encalorava suas pernas e uma camisa de botões toscos costuradas de maneira amadora e sobre ela um suspensório com cor de palha fazendo combinação com seu chapéu. Sentia suas frontes molhadas de suor. Encostou-se junto à parede para descansar seu corpo num breve tempo até ser desperto por uma lufada de espíritos zombeteiros com aroma de saudade. Mesmo sendo prazeroso escapou numa gambeta até alcançar mais alguns degraus abaixo. Livre do susto olhou para cima na esperança tardia de rever a confusa imagem que o atropelou. E descia agora trazendo a cisma esquizofrênica do encontro rápido e pavoroso. Atordoado e cansado insistia em chegar até o plano inferior do casarão para reconhecer o que fora impedido de viver. De repente começou a ouvir um delicado dedilhar, sem força, docemente, uma melodia de Ravel em piano e soube de imediato reconhecer a canção. Sorriu. Podia esperar vida logo mais, e ao invés de descer desenfreado para se aproximar do instrumentista, mergulhou num silencioso e feliz devaneio regendo um balé de dedos no ar. A música o acalmava enfim, ainda faltava muito, sabia. Embalado pelo clássico encanto sonoro descia ainda mais, observando a decoração das paredes. A infinita escadaria era cercada de paredes. Deteve-se um instante em frente a uma ilustração que lembrava o álbum 20 poemas de Amor Y Una Canción Desesperada de Pablo Neruda e entristeceu-se com os olhos azuis e aflitos da figura. Um pouco mais para a esquerda estava uma gigante réplica de O canto da mesa de Fantin-Latour onde o pintor representou Verlaine ao lado de Rimbaud ainda jovem e esforçou-se para decifrar o enigma daquelas obras, resmungou baixinho: Romances sans paroles. Seguiu seu percurso obstinado sem se importar com a Princesa Camundongo também exposta na parede até que sentiu esmagar cacos de vidro com suas botas grosseiras, eram lascas de taças quebradas borradas de vinho seco ou sangue. A partir desse momento começou a perceber que os degraus eram forrados por um empoeirado e puído tapete, talvez e provavelmente, estivesse chegando até a sala. Chamou sua atenção o extraordinário lustre no alto da escadaria com várias lâmpadas apagadas e a ausência de alguns pingentes que formariam um respeitoso girassol. Um tanto burguês demais pensou, mas de grande impacto visual sem dúvida. Alegrou-se instantaneamente ao reconhecer uma fotografia numa pequena moldura, idêntica a uma outra que havia deixado junto à bengala em sua cama. Na fotografia estava uma nostálgica família sentada num banco de jardim, sorrindo pateticamente para a câmera. Tratava-se de um velho senhor ao lado de uma senhora, que o fez lembrar da esfarelada imagem encontrada no alto da escadaria e ainda mais uma criança vestida com suspensórios e botinas, muito semelhante ao que vestia, embora em tamanho menor e, ao fundo, um casarão que bem poderia ser o mesmo que escondia essas intermináveis escadarias. É certo que ficaria durante muito tempo contemplando a fotografia não fosse o cessar inesperado do piano. Desceu afoito e com pressa para diminuir a distância entre onde estava e a sala de onde certamente seria o fim dessa viagem sombria de recordações adormecidas ou esquecidas ou ainda desconhecida. Pulava dois em dois degraus, para amenizar o tormento e apressava-se desesperado até que o piano voltou a tocar e mais uma vez soube identificar a melodia. Uma melodia de Satie dessa vez. A música tinha um efeito tranqüilizador que o fez recuperar um pouco de ar e seguir com a descida indefinida. A mancha de vinho seco ou sangue ia ficando cada vez mais evidente, em quantidade visivelmente assustadora. Era a confirmação de que havia acontecido uma terrível tragédia e mesmo sem saber definir de quem era o sangue ou quem havia desperdiçado tanta bebida, prosseguiu seu caminho irritado com o término imprevisível. Tanto desceu que uma claridade foi se aproximando numa anunciação de liberdade. Exausto e com muita idade soube reduzir a velocidade para aproveitar os últimos degraus, extasiado com a canção forte do piano explodindo em seu peito, parou. Voltou-se para trás e numa tentativa de registrar o inexplicável mistério fechou os olhos profundamente e chorou. Seu quarto, seu exílio deixado lá no alto era passado. O fim do medo. A covardia rompida. Um quase relembrar de fatos perdidos na caixa branca de sua memória. O rompimento definitivo da exclusão. Do abandono. Desceu tanto para subir novamente, em outras circunstâncias, em outras escadarias. De uma outra e nova vida. Abriu lentamente os olhos cobertos de lágrimas e calculadamente virou-se para saltar o último degrau. Alcançou a sala, enorme. Com seus móveis escondidos por lençóis, exceto o piano que descoberto e de tampa fechada continuava tocando sem que houvesse um instrumentista. Sorriu. Não fez questão de entender. Sans paroles... Caminhou pé por pé, coreografando com os dedos no ar Mozart ou Chopin até uma majestosa porta. Trouxe até seu peito as fechaduras e finalmente reconheceu a rua. No jardim estava o banco todo desfeito. Sentiu cheiro de saudades. Respirou fundo e deu início ao novo percurso, uma estrada com uma linha de fim como a do mar. Misteriosa. Já era velho e solitário e seu destino era tão certo quanto seu passado. Infeliz. Seus passos arrastados o levavam para sua morte. Chorou. Livre do casarão ou próximo de voltar, seguiu sem perceber que ao fundo então, o girassol acendeu-se.

Andy Gercker
14 de janeiro de 2008.

22 setembro 2011

ÚLTIMA VISITA


Obrigado por entre outras tantas coisas você ter sido capaz de vir me ouvir. Obrigado por arrastar sua cadeira até bem perto de mim e descansar seu pesado casaco no colo e pedir para baixarem o volume das vozes no corredor e por ter reduzido as luzes também para que eu me sinta um pouco mais confortável e seguro e mais calmo num cenário menos hostil. Obrigado por olhar profundamente dentro dos meus olhos a ponto de me deixar trêmulo com tanta atenção. Obrigado por não zombar de mim nesse estado tão deprimente triste e adoentado. Obrigado por ter vindo com flores e obrigado por não ter recusado esse meu último aflito e desesperado convite.
Agora diga que estou menos inchado e que já não estou mais com aquela cara de choro e que meus olhos deixaram de ficar vermelhos e que deixei escapar que estou um pouquinho mais feliz por você ter vindo até aqui e diga também que talvez seja hoje que eu finalmente consiga dormir.
Pronto.
Podemos começar.
Será que devo deixar você falar tudo o que quiser se é que tem alguma coisa que você ainda queira me falar se é que existe alguma coisa que eu ainda queira saber ou se é realmente importante que você fale ou que apenas continue assim me olhando.
Será que devo parar de pensar tanto nas palavras que desejei ouvir acreditando que me trariam mais conforto do que esses seus olhos fixados nos meus?
Minha sede de atenção quase faz com que eu não perceba o quanto esse pequeno e novo instante inaugurado entre nós é tão confortante e o suficiente para não esperar mais nada e também até esquecer de uma vez por todas aquelas palavras ensaiadas e que agora já não teriam mais tanto sentido se as fossem ditas.
Eu estragaria esse momento que jamais cheguei ousar a pensar que pudesse ser tão tão antes de. Se acaso eu inventasse de esparramar todas aquelas mágoas tolas e quase infantis com certeza quebraria grosseiramente isso que me oferece assim tão docemente.
Pois sim vou lhe falar que saltei meus pés do chão desde que te vi pela primeira vez e que de lá pra cá desaprendi como se devia andar com os pés firmes na terra.
Não. Você não teve culpa. Não. Você não foi responsável pela minha febre e loucura. Não. Você não devia ter feito nada diferente. Não mesmo.
Eu que me apressei e esqueci ou nem sei se quis pensar que talvez você não estivesse para mim. Eu apenas voei. E lá do alto conheci tanta coisa vi tanta coisa e chorei por tanta coisa que não mais aguentei me desequilibrei caí e adoeci.
Eu tentei ser mais a cara do mundo de todo mundo para ver se me machucava menos e tentei não resistir mas não consegui deixar de ser esse que acorda e se espreguiça como se saísse de um livro de capa amarelada e roída pelas traças e pelo tempo. Eu lamento tanto por não ter conseguido fazer com que os outros e em especial você percebesse que basta saltar com um pé para voar nesse outro mundo com sabor de algodão doce que escolhi para viver.
E o mundo daquelas caras do mundo se voltaram contra mim e me zombaram e me atravessaram e me deixaram aqui deitado sozinho banhado em forte luz clara de lampada fria e com essas vozes sussurradas que me assustam por dias e dias. E se eu não fosse obrigado a ter vindo para cá daria no mesmo agora estaria mofando com meus casacos velhos e cigarros de filtro amarelo digno de uma surra numa poltrona velha em casa.
Aí depois que saltei no ar e fiquei vagando de bar em bar cabisbaixo e moribundo e um tanto azedo no cheiro na cor e no humor tão desolado e agressivo que me laçaram e me trouxeram amarrado por um barbante como se fosse uma pipa triste.
Desculpa se é que me permite pedir desculpas por te contar essa história de um aventureiro encantado que viu a terra despencar debaixo dos pés quando soube que não teria mais o seu grande amor e não teria mais onde aterrizar.
Então insisto em dizer obrigado por não ter recusado meu convite por ter vindo me olhar como a tempos não me vêem e obrigado por não ter falado nada e ter me deixado narrar assim sem parar sem respirar essa história que não ensaiei e que não sei devia contar e obrigado por ter pedido para baixar as vozes no corredor e ter colocado essa música bem a nossa antiga cara e ter feito esse truque com as luzes aconchegando o quarto e me esquentando um pouco.
Não sei mais o que dizer não sei se você espera que eu ainda fale mais alguma coisa só sei que está bom esse pequeno instante e que infelizmente já está acabando. Não vou pedir para você voltar por que sei que não tenho mais esse tempo assim como não vou esperar que você salte e venha morar comigo nesse lado de cá porque não tenho esse direito. Mas preciso que saiba que estou um pouquinho mais feliz por você ter vindo me encontrar e obrigado e muito obrigado por ter me deixado desabafar essa fábula que vivo desde o dia que me você me deixou. Nada vai mudar depois que tudo mudar. Nem nada mais vai acontecer senão eu sumir depois que você sair e fechar a porta e pedir para que desliguem esses fios que anestesiam meus braços. Obrigado por ter vindo me ver antes de apagar e por favor mas por favor mesmo não me esqueça depois disso acontecer.

Andy Gercker
Curitiba 17 Maio 2009