21 junho 2009

ONTEM NÃO ESCURECIA NUNCA

Ontem, a noite não escurecia nunca. Só fui perceber isso quando entrou no meu quarto o som de um insano motorista conduzindo desgovernadamente seu veiculo. De freadas em freadas pelas ruas secas e vazias da noite. Ate então eu estava mergulhado em Hilst-Lispector-Abreu, não sei. Procurei-o pela janela e não o encontrei, apenas o sentia percorrendo velozmente as ruas nuas. Eu numa dezena de palmas horizontais pude contemplar enfim o céu claro, mas tão claro, que não poderia crer se não o visse. E vi. E foi ele, o desgovernado insano motorista que veio me avisar, me chamar para ver que a noite não escurecia. Naquele instante tive a sensação de que apenas eu, sim apenas eu estava tendo o delicado privilégio de contemplar tamanha beleza. Aquilo tão grande, tão perto, tão meu. Aquela noite tão doce, tão clara de inverno tal como fim de tarde. Não havia outro som senão a histeria insistente do motor atormentando meu peito. A vida. Aquela que tanto me assusta, agora dormia. Tudo parado. Eu estava emoldurado naquela janela. Como uma gota de maçã em uma folha de papel em branco. Incomum. Completamente só naquele deserto de almas, ou almas sonolentas. Trancado como princesa no alto da torre. Coração vazio. Minha atenção que até então estava na literatura do lado de dentro da janela procurava desesperadamente distrair-se agora pelo lado de fora. Mas nada. Repito, nada. Deserto de almas, ruas secas e nuas. Só o insano motorista me chamando para ver que a noite não escurecia. Que era tudo luz agora.

Andy Gercker

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